O CNC, o FDE e o afeto que nos move, ou as perguntas que não foram feitas 9 de agosto de 2013 às 21:38 A semana que passou e esta foram envoltas em polêmicas sobre o coletivo Fora do Eixo, levantadas por um artigo de Beatriz Seigner. Acabei me envolvendo, pois o texto dela fazia menção a questões cineclubistas e escrevi um nota e participei das discussões em vários posts na rede do Facebook. Também levei o assunto a nossa lista CNC Diálogo. A polêmica continua com publicações no Facebook e em blogs diversos. Algumas publicações acusam o coletivo em testemunhos longos de ex-integrantes, membros de outros coletivos ou artistas que têm alguma história para contar sobre suas relações com o FDE; outras vão em sua defesa, demonstrando que o coletivo tem força e uma grande capacidade de articulação e mobilização de apoios. Houve ainda alguns memes e piadas atirados para ambos os lados, alguns engraçados, outros apenas infames e ofensivos, assim como a mídia PIG, com sua representante máxima, a VEJA, que também correu para se apropriar das denúncias da Beatriz e de outros, acusando o FDE de práticas de escravidão e coisas piores. O pior disso tudo foi ver comentários extremamente reacionários e fascistas colados às críticas e depoimentos, que muitas vezes apenas pretendiam trazer à tona alguma história pessoal em narrativas que talvez buscassem um protagonismo em uma rede que nivela as subjetividades e na qual, pelo que pude perceber pelos relatos, poucos conseguem ter espaço para exprimir os afetos que os movem. Tentei ler tudo, apesar da correria, dos inúmeros lados que pularam para fora dos meios restritos dos coletivos onde os debates geralmente ocorrem, alcançando um vasto público de forma viral e tocando fogo nas redes de forma apaixonada. E tentei ler, porque quero entender, saber como esta rede se move e quais são as motivações que a levam a se mover. O porque, pretendo descrever abaixo e, sim, este é mais um testemunho, se trata de um texto pessoal e não acadêmico e não busca dar conta de todos os sentidos, apenas dos possíveis para mim neste momento, principalmente para tentar compreender como esta rede do FDE afeta ou afetou a mim e aos coletivos dos quais faço parte. Desde que ouvi falar do FDE em 2009, quando ainda quando estava como diretora de memória no Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros - CNC, tenho buscado entender as suas práticas e não simplesmente aceitá-las ou descartá-las de pronto. Nesta época travei conhecimento com um dos seus membros em alguns encontros cineclubistas e que buscavam articular a rede de Cines que foram aprovados no Programa Cine Mais Cultura (o governo tinha arrepios quando chamávamos de cineclubes e inventaram este eufemismo ridículo pra tentar tirar a carga política do nome “cineclube”). Ele tinha um discurso bastante persuasivo sobre o modelo de sustentabilidade e economia do grupo com sua moeda paralela. Lembro que na época isso causava estranheza e tentamos entender como essa história funcionava, mas isso não colou no movimento cineclubista, pelo motivo de que este era e é um dos movimentos culturais mais diversos que já conheci em toda minha vida. Existem cineclubes de todas as formas e tendências: Têm cineclubes com conceito LGBT, de mulheres, de trabalhadores, de estudantes, de crianças, de idosos, funcionando na periferia das grandes cidades, nos centros universitários, nas escolas, nas igrejas nos terreiros, nas pequenas cidades, nos sertões, nas montanhas, até cineclube-sala, debaixo de árvores em quintais e em barcos... Enfim, como tentar vender uma ideia única de sustentabilidade calcada em uma moeda para um público tão diverso e tão espalhado por todo o país? Ou ainda, como explicar para este movimento, que tem uma prática de resistência à lógica capitalista, que deveria se encaixar em uma economia que trabalhasse com uma única forma de sustentabilidade para todos os cineclubes, sendo que, no nosso ponto de vista não se desfaz na prática, de alguns modos e vícios de produção, de distribuição e de organização do trabalho neste sistema? Mas acabamos tendo um grande desgaste com eles em um fato que ocorreu em um encontro da nova diretoria do CNC recém eleita em 2010, que fez com que nossa resistência ao seu discurso monotemático se acirrasse e as possibilidades de sermos entidades parceiras se rompessem, o que nunca impediu que cineclubes da nossa rede fizessem suas parcerias com a rede do FDE. Como disse e repito, nossa rede é muito diversa e não existe um controle central das ações dos cineclubes espalhados em todos o país, apesar de termos alguns princípios básicos e de nossa oficinas terem um modelo que se multiplica. Os cineclubes são totalmente livres para se associarem ou não ao CNC, para exibirem o que quiserem de acordo com suas realidades, para tirarem CNPJ ou não, para criarem associações e federações próprias ou não, assim como as oficinas podem ser modificadas e terem assuntos incluídos ou excluídos de acordo com o que é mais importante para aquele grupo interessado no assunto no momento. Enfim, o CNC como rede existe para dar suporte aos cineclubes, não o contrário. Passados alguns meses da nossa eleição conseguimos nos reunir em Atibaia, em um encontro onde todas as regiões estariam representadas e no qual traçaríamos nossas diretrizes para o biênio pensando juntos nossos projetos comuns. O escolhido para representar a região do Centro Oeste foi um rapaz que também era do FDE (não vou citar nomes e nem entrar em detalhes, pois o que me interessa aqui é pensar sobre a forma de atuação do coletivo FDE em uma relação com o nosso coletivo do CNC). Ele estaria alí na qualidade de cineclubista e não de representante do FDE na diretoria do CNC, pois o CNC é um conselho de cineclubes, não um conselho de entidades, portanto, não temos representantes de outras entidades em nossa diretoria. Na ocasião, eu mesma o recebi e fui bastante clara sobre o papel dele ali e expliquei como seria o evento, como as coisas aconteceriam, os horários de reunião, os temas, etc. Porém, na reunião do dia seguinte, sempre que ele pedia a palavra, falava apenas do FDE, tanto que chegou uma hora em que nosso presidente chamou a sua atenção, afinal era uma reunião para traçar as estratégias de funcionamento da nossa entidade pelos próximos dois anos, e não de apresentação do FDE. No dia seguinte, creio, ele foi embora, e nós continuamos. Mas a surpresa veio ao descobrirmos por um de nossos diretores, que também estava desenvolvendo alguns projetos com eles, que nos alertou ao ter acesso a um dossiê deste representante do FDE para o seu grupo, com informações detalhadas de toda a nossa diretoria e de nossa reunião (que aliás, era pública e havia sido transmitida via streaming). Neste documento, estava bem claro que a intenção dele nunca foi representar os cineclubes do CO, mas nos “contaminar” (jargão utilizado por eles) com o modo de operar do FDE e recolher informações políticas e pessoais de cada um de nós, inclusive do grau de poder (ou “lastro”, também no jargão deles) que cada um de nós detinha na diretoria. A partir desse momento houve uma troca intensa de e-mails entre entidades e na nossa lista do movimento cineclubista, houve acusações e discussões acaloradas e um pedido de desculpa por parte dele e resolvemos seguir nossas atividades, compreendendo, no entanto, que não seria possível trabalhar com uma parceria entre entidades, pois havia muitos choques de interesse conceituais entre nós. A atuação dentro do CNC não é pautada por medo, muito menos fingimos ser o que não somos. Brigamos sim, e muitas vezes em público, mas respeitamos nossas diferenças. Claro que nem sempre as diferenças foram sanadas, alguns rachas houveram, mas existe uma convivência intensa entre cineclubistas, tanto os velhos de guerra (afinal nosso movimento tem 80 anos só no Brasil, 100 no mundo e o próprio CNC tem 50 anos), como a galera nova chegando com novas ideias e novas propostas e todos os tipos humanos possíveis de todas as regiões do país e do mundo. Eu considero um movimento apaixonante e não é por eu não estar mais na diretoria que deixei de ser cineclubista ou de falar como movimento. Aliás, eu não falo mais em nome da diretoria, pois não faço parte dela, mas posso sempre me colocar como uma cineclubista e fazer meu movimento com meus pares onde estiver. De qualquer maneira senti necessidade de contar esta historinha e tentar encerrar o capítulo desta polêmica na minha vida, principalmente para poder esclarecer o que quis dizer quando falei que o FDE se apropria dos outros movimentos e coletivos e acaba colando sua etiqueta, impondo sua grife nas ações das quais não participa efetivamente. E isto ficou bem claro nesta situação relatada, pois esta acabou se revelando uma tática bem comum do FDE em outras situações mais difusas, sendo que a sequencia lógica seria a de fazermos algum evento ou parceria e sermos cooptados por eles e, acabarmos com o selo FDE colado ao movimento cineclubista, “selando” assim, o destino de um movimento do qual eles nunca se interessaram em conhecer a história, muito menos sua produção filosófica e conceitual. Na verdade, sabemos que eles se interessaram realmente pelo programa do qual éramos parceiros da SAv na sua execução, o Cine Mais Cultura, e pela visibilidade que tínhamos alcançado através dele. Depois vieram os artigos do Passapalavra e toda a polêmica que rolou entre eles, com acusações e descredenciamentos do FDE ao site e seus articulistas. E eu fui juntando informações, até para poder pensar e realmente não ser injusta, não desqualificar um movimento que parece bacana na superfície e que também tem pessoas realmente legais envolvidas. Mas é quase como se tivesse uma cortina de fumaça ao redor deles, formada de discurso e palavras e uma movimentação incessante, frenética, que impede o olhar de se fixar. Então, a gente fica assim, pensando: Qual é a desse tal de FDE? E, na boa, hoje penso que ou eles se repensam, ou a moçada vai acabar acordando desse sonambulismo insone, desse trabalho de formiga no qual as cigarras me parecem ter sido expulsas. Todo movimento tem um momento em que deveria se repensar, se discutir, se rearranjar nas suas relações, ou corre o risco de perder o combustível que o alimenta, ou seja, as pessoas das quais é feito e o afeto que as move em direção umas às outras e que acaba movendo o movimento. O próprio CNC não foge a isto, também temos nossos momentos de fluxo e refluxo e temos que nos pensar continuamente, nos criticar para vermos se não estamos jogando do lado “errado” da linha. Parece que chegou a hora do FDE se pensar, depois de tantas críticas e tantos relatos de insatisfação, não só de pessoas de fora do Fora do Eixo, como também das pessoas de dentro. Talvez seja preciso começar a ver a imagem que se forma e que não é mais aquela que eles tão intensamente têm tentado passar para todos através deste espelho fragmentário e veloz. Nós (eu e todos que estão de fora do FDE, mas que somos afetados por suas práticas) também temos que tentar entender o que se passa, criticar, discutir tudo aquilo que nos afeta. E este "fenômeno" vem nos afetando há tempos. Mas, pra mim, mais grave do que tudo, é esta sede de apropriação das ações dos outros movimentos como tentaram fazer conosco. Além de que, toda essa movimentação do FDE no setor cultural é revestida com ares revolucionários e embalada com um discurso acadêmico calcado em uma retórica da pós modernidade que não carrega na realidade, nenhuma proposta de mudança social de fato, ou talvez não estejamos ouvindo as palavras que deveríamos ouvir. Pois, o que vejo e ouço é apenas o fazer por fazer como fim, cada vez mais e mais. Mais festivais, mais mostras, mais bandas, mais shows, mais mais mais... Legal, também adoro, mas... Acho que as perguntas certas não estão sendo feitas. O que move um movimento? O que move as pessoas? Que transformação elas buscam? De que maneira chegar onde querem chegar? Como são suas relações? Como são suas ações? Elas espelham os seus discursos? Tirando todo o discurso de formação de rede, de moeda, de economia pós capitalista, pós fordista, pós rancor, do comum, da produção colaborativa, etc etc etc... Como responder as perguntas acima? E além disso, parece que as ações culturais no país ficam cada vez mais centralizadas no FDE, os festivais e mostras e bandas ficam cada vez mais com cara de FDE... Sei lá, para mim fica tudo com uma cara meio igual, vejo apenas uma “logo” se espelhando pelo planeta e todas as paisagens ficando iguais, aplainadas. E apesar deles se apropriarem e espalharem a ideia de uma economia da multidão, penso que a multidão que quero ver é a multidão da diversidade, não da uniformidade. Aliás, isso passa também pelas questões de difusão dos produtos culturais, pela eterna questão da discussão sobre os direitos autorais e patrimoniais sobre a criação artística... E com a internet e a pulverização da autoria e a criação de toda uma cultura urbana mundial remix, as coisas se aceleraram. E isso não quer dizer que o pobre do artista não deva viver do seu trabalho... E isso ainda é uma incógnita nos novos modos de produção e difusão cultural na era do "share" no mundo capitalista (sim, ainda capitalista). Existe sim, uma apropriação de tudo isso, de todos estes discursos, de todo este conhecimento e de toda esta produção pelo FDE. O que não deixa de ser interessante, mas, por outro lado, deixa sim de ser interessante, a partir do momento em que eles tentam capitalizar e centralizar tudo em um único bloco cultural, se empoderando ao tirar o poder do outro para poder se empoderar cada vez mais, em uma tentativa de transformar a diversidade dos movimentos sociais e culturais em um único caldo comum e requentado, com a justificativa de que a multidão é mais forte atuando em "bloco". Será? Na verdade, com esta estratégia, eu vejo que quem fica mais forte, é apenas o FDE em seu "núcleo duro". Na verdade, o que vejo nas suas ações é apenas uma sofisticação dos meios e modos capitalistas, ou seja, vejo-os como um pouco mais do mesmo, apenas mais uma virada do sistema, mas posso estar errada. Ou não. retirado de https://www.facebook.com/notes/saskia-sa/o-cnc-o-fde-e-o-afeto-que-nos-move-ou-as-perguntas-que-n%C3%A3o-foram-feitas/4605523955794 em 9 de agosto de 2013